O Retorno ao Divã

O Retorno ao Divã – Freud e o Diabo Parte 2

Meses se passaram desde o primeiro encontro. Freud não conseguiu esquecer as provocações do visitante inusitado. Algo o intriga: ele nunca conseguiu “diagnosticar” o paciente em questão. Um dia, sem aviso, o Diabo reaparece, mais sarcástico do que nunca. Ele entra com sua habitual confiança, sem ser convidado, e se joga no divã como se estivesse em casa.

Diabo: Olá, Sigmund! Espero que tenha sentido minha falta. A última sessão foi tão esclarecedora, não acha? Você me deixou quase emocionado com seu esforço hercúleo de salvar o ego humano.

Freud: [Ajusta os óculos, visivelmente incomodado.] Eu admito que nosso último encontro foi… instrutivo, no mínimo. Sente-se, então. Diga-me, o que o traz de volta? Outra sessão de autossatisfação?

Diabo: Oh, Freud, não me subestime. Estou aqui para acompanhar de perto o progresso das suas “descobertas científicas” e ver como você continua refinando a arte de diagnosticar problemas sem nunca encontrar a verdadeira solução.

Freud: Interessante. Mas, antes de continuar, deixe-me perguntar: como você avalia o impacto das minhas teorias sobre a humanidade?

Diabo: [Rindo sarcasticamente] Ah, não poderia estar mais satisfeito! Graças a você e a seus seguidores, milhões agora estão obcecados com a “autodescoberta”. Estão eternamente presos em um espelho, analisando cada fratura do próprio ego enquanto eu passo o tempo polindo o vidro. A humanidade se tornou uma legião de narcisistas, cada um mais convencido do que o outro de que a resposta está dentro de si mesmo.

Freud: E você vê isso como um fracasso?

Diabo: Fracasso? Não, não. Eu vejo como um espetáculo! Uma bela peça teatral, onde o ser humano busca obsessivamente curar sua alma doente enquanto se recusa a admitir que precisa de algo além de si mesmo – ou de você, Freud. Vocês criam novas teorias como criancinhas montando castelos de areia na praia, ignorando que a maré está sempre prestes a levar tudo embora.

Freud: Mas e a ciência? Não é nosso dever evoluir, buscar explicações racionais, entender o inconsciente e oferecer caminhos para que o ser humano alcance a harmonia interna?

Diabo: [Com um olhar de puro deboche] Oh, “harmonia interna”! Que conceito adorável! Mas o que vocês fazem é oferecer a ilusão de controle. Vocês dão aos humanos uma falsa sensação de poder sobre suas mentes enquanto ignoram que, sem uma transformação real, o máximo que conseguem é reprimir o caos. E eu, claro, fico na plateia, aplaudindo de pé.

Freud: O que sugere então? Que deveríamos simplesmente desistir? Abandonar o progresso em nome de uma visão mística ou religiosa?

Diabo: [Inclinando-se no divã, com um brilho de malícia nos olhos] Não estou aqui para dar conselhos, Freud. Eu estou aqui para apreciar como vocês, em sua arrogância, acreditam que podem curar a alma humana com ciência, enquanto o verdadeiro problema está além da alçada de qualquer estudo, teoria ou medicamento. Vocês produzem volumes e volumes de literatura sobre o ego, o id e o superego, mas nada disso muda o fato de que o orgulho é o que alimenta tudo isso. Vocês acham que estão salvando o mundo quando, na verdade, só estão fortalecendo o que eu sempre quis: o culto ao eu.

Freud: Interessante ponto de vista, mas a psicanálise trouxe avanços inegáveis. Redefinimos a compreensão do comportamento humano, mapeamos traumas, ajudamos a liberar pessoas de suas amarras.

Diabo: [Com uma risada sarcástica] Ah, claro, claro… Liberdade! Esse é o ponto, não é? Libertar as pessoas de suas amarras… para amarrá-las a outras correntes ainda mais sutis. Vocês se tornaram mestres em trocar uma escravidão por outra. “Seja o que quiser! Realize todos os seus desejos! Cure-se!” – é isso que pregam, não é? E nesse processo, vocês apenas me ajudam a inflar mais e mais o ego humano, até que ele exploda em desespero e vazio.

Freud: [Agora irritado] Então qual seria a solução, segundo você? Submissão cega a dogmas? Negar a racionalidade humana e regredir à ignorância?

Diabo: A questão não é negar a racionalidade, meu caro, mas reconhecer seus limites. Vocês estão tão obcecados com a ideia de “progresso” que não percebem o quão longe estão se afastando da verdade. Enquanto a humanidade continuar a buscar sua própria glória, acreditando que pode se salvar por seus próprios meios, eu estarei satisfeito. Eu não preciso de culto, Freud. Basta que vocês continuem acreditando que podem ser seus próprios deuses.

O silêncio se instala. Freud, em sua mente analítica, começa a perceber as contradições que ele mesmo enfrenta ao tentar resolver problemas que parecem transcender suas teorias. Mas antes que possa formular uma resposta, o Diabo se levanta, sorrindo de orelha a orelha.

Diabo: Bem, querido Freud, foi um prazer, como sempre. Adoro conversar com intelectuais que acreditam ter todas as respostas, mas que no fundo estão tão perdidos quanto qualquer outro. Nos vemos na próxima vez que você decidir brincar de Deus.

Com uma reverência teatral, o Diabo desaparece, deixando Freud novamente sozinho com seus pensamentos – e com um desconforto crescente em seu coração.

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